Na notícia comentada de hoje analisarei uma reportagem veiculada no portal Gazeta Online que trata sobre a quantidade de detentos que são presos novamente após obter liberdade.
A notícia já começa com a informação de que “Cerca de 80% dos presos que são colocados em liberdade voltam para o sistema prisional capixaba”.
Dá a entender, então, que estamos diante de uma taxa de 80% de reincidência, mas não é bem assim.
Tecnicamente, para ser considerado reincidente é preciso que a pessoa, quando da prática do crime, já tenha sido condenada criminalmente de forma definitiva, com trânsito em julgado, sem possibilidade de recurso, antes dos novos fatos.
Ou seja, o crime é praticado em 04/09/2019 e o indivíduo já possuía uma condenação definitiva, com trânsito em julgado em 04/06/2019.
Assim, quando da prática dos novos fatos, em setembro de 2019, a pessoa já era definitivamente condenada e, portanto, reincidente.
No caso da notícia em análise não se trata especificamente de reincidência, mas de qualquer detento que tenha sido liberto e posteriormente preso.
Logo, é possível que tenha sido preso, mas não tenha praticado nenhum crime; que esteja preso ilegalmente; que seja posteriormente absolvido; dentre várias outras questões.
Isso é importante, pois em uma primeira análise poderíamos pensar que temos 80% de reincidência, o que não é verdade. Podemos ter uma taxa de 80% de reingresso, o que é diferente de reincidência (mas não menos grave).
De qualquer modo, temos que analisar esse número de forma muito além e mera questão de vontade ou de escolha. É claro que os atos praticados pelas pessoas partem de escolhas pessoais, mas não podemos creditar apenas a essas escolhas a decisão pela prática ou não de nova infração penal.
E isso pode ser explicado por meio do desvio secundário, representado pela influência do próprio Estado, por meio das suas instâncias oficiais, na “escolha” pela prática de novo crime, ou seja, o Estado, em vez de contribuir para que cesse a prática delitiva, acaba influenciando a perpetuação no crime.
Já escrevi em outro texto (sobre “O que leva uma pessoa a praticar um crime?”), que
“O desvio secundário, por sua vez, é aquele em que a pessoa já delinquiu uma vez e torna a praticar outro crime. Só que dessa vez não o faz apenas pelas suas vontades próprias, influenciado pelos diversos fatores pessoais, sociais, econômicos, familiares, …, já citados.
Outros fatores externos contribuem diretamente para o ilícito, principalmente a atuação do Estado na repressão ao crime.
Nesse sentido, tanto a penalidade imposta ao primeiro desvio quanto a reação social modificam a identificação do indivíduo na sociedade e, por consequência, geram nele “uma tendência a permanecer no papel social no qual a estigmatização o introduziu”. (BARATTA, 2011, p. 90)
Dessa feita, o desvio primário refere-se “a um contexto de fatores sociais, culturais e psicológicos, que não se centram sobre a estrutura psíquica do indivíduo”, enquanto aqueles fatores que sucedem a reação social – referente à incriminação e à pena – possuem uma forte influência dos “efeitos psicológicos que tal reação produz no individuo objeto da mesma”, de modo que “o comportamento desviante (e o papel social correspondente) sucessivo à reação ‘torna-se um meio de defesa, de ataque ou de adaptação em relação aos problemas manifestos e ocultos criados pela reação social ao primeiro desvio’”. (BARATTA, 2011, p. 90)
Inclusive, os estudos voltados para o desvio secundário colocam em xeque a função preventiva da pena, em especial o objetivo educativo, mostrando que
a intervenção do sistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinquente determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa. (BARATTA, 2011, p. 90)
Depreende-se, então, que, por meio do desvio secundário, ocorre uma deterioração do criminalizado e do aprisionado, com o foco voltado para o último, sendo,
[…] insustentável a pretensão de melhorar mediante um poder que impõe a assunção de papéis conflitivos e que os fixa através de uma instituição deteriorante, na qual durante prolongado tempo toda a respectiva população é treinada reciprocamente em meio ao contínuo reclamo desses papéis. Eis uma impossibilidade estrutural não solucionada pelo leque de ideologias re: ressocialização, reeducação, reinserção, repersonalização, reindividualização, reincorporação. Estas ideologias encontram-se tão deslegitimadas, frente aos dados da ciência social, que utilizam como argumento em seu favor a necessidade de serem sustentadas apenas para que não se caia apenas num retribucionismo irracional, que legitime a conversão dos cárceres em campos de concentração. (ZAFFARONI & BATISTA, 2003, p. 125-126)
Ao que tudo indica, então, as entidades encarregadas do combate e prevenção das condutas desviantes atuam de forma contrária aos seus objetivos, de modo a, inclusive, alimentar a sua prática, ou seja, muitas daquelas que deveriam “desencorajar o comportamento desviante operam, na realidade, de modo a perpetuá-lo”. (SHECAIRA, 2004, p. 297)
A conclusão que se chega sobre o que leva uma pessoa a praticar crimes é clara: diversos fatores contribuem para a escolha do indivíduo em praticar um crime, desde ordem moral, psicológica, emocional, econômica, social, cultural, …, até mesmo a atuação do próprio Estado na repressão a essas práticas criminosas”.
Para finalizar, a própria notícia nos traz a demonstração de que a prática de crimes não é apenas uma questão de “escolha”: apenas 15% (quinze por cento) dos presos do Estado do Espírito Santo estudam OU trabalham, um dos motivos que certamente contribuem para o grande índice de reingresso.
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